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Paisagem Óleo sobre tela colada sobre platex (28x34)
Apresento esta obra, porque me parece fazer lembrar a aldeia do meu conto de Natal.
Este foi o meu primeiro quadro (1994). Quando o pintei, no estúdio do Mestre Pina da Silva,ele fez um ar de surpresa e agrado, que me deixou muito orgulhoso e disposto a continuar a pintar. Esta continua a ser o obra preferida da minha filha, Elsa. Estou farto de trabalhar para ver se consigo mudar-lhe a opinião. Até hoje, ainda não consegui...
Não há amor como o primeiro...Natal em SetembroCapítulo I – Regresso às origensOlhou novamente para o relógio digital do automóvel: nesse momento, marcava nove horas da manhã, do dia vinte e cinco de Setembro, o que queria dizer que faltavam pouco mais de três horas...
Apesar do mau estado da estrada não estava arrependido por ter cedido ao impulso de fazer aquele desvio.
A decisão tinha sido tomada no momento da assinatura dum vantajoso contracto de fornecimento de café, ao verificar que o dono da empresa era natural de Arnóia. Considerou esse facto como um sinal divino para cumprir uma obrigação que, por um motivo ou outro, tinha sempre adiado.
Não fazia a mínima ideia do que iria encontrar. Esperava ter na aldeia, um local em que pudesse almoçar e convencer alguém a mostrar-lhe a casa onde tinham vivido os seus pais, o seu jazigo e o túmulo de Munio Moniz, o mais ilustre de todos os seus antepassados.
Depois de subir um pequeno outeiro, viu pela primeira vez a aldeia em todo o seu esplendor. Um edifício destacava-se no meio do casario, talvez um antigo mosteiro, junto a uma igreja no centro da praça, rodeada por casas de construção tradicional, em que predominava o granito. No limite poente, distinguia-se um pequeno castelo, com a torre de menagem em ruínas.
Enquanto o seu cérebro absorvia estas informações, começou a suave descida e, ainda mal refeito das emoções contraditórias que o assaltavam leu, incrédulo, num arco cheio de lâmpadas de diversas cores: “A Fundação deseja a todos um Feliz Natal”.
Os arcos com luzes sucediam-se a espaços. As árvores que ladeavam a estrada estavam ponteadas de lâmpadas coloridas e as montras dos estabelecimentos tinham tudo o que é normal apresentar na quadra natalícia.
Chegou ao centro da praça e estacionou o automóvel. Apreciou com espanto o presépio e o gigantesco pinheiro coberto de luzes e bolas coloridas, junto ao pelourinho e coluna da forca. Uma decoração grandiosa, atendendo à dimensão da aldeia. “E única – disse para si próprio. Não te esqueças que estamos a vinte e cinco de Setembro”.
Ao fundo duma rua estreita, divisou um estabelecimento que lhe pareceu um café. Dirigiu-se para lá. Um sorriso suavizou-lhe as faces angulosas ao ler o nome na placa suspensa sobre a porta: “Café – Natal Sempre”.
Quando entrou, as poucas pessoas presentes fizerem silêncio, a olhá-lo, achou, ostensivamente.
-“Bom dia, minha gente!” – saudou em voz alta, caminhando para o balcão.
Ficou com a impressão que todos se levantaram para lhe responder, num coro afinado:
-“Bom dia, senhor!”.
No balcão, um velho, de ombros largos e direitos, cabelos brancos e ralos, mãos enormes a segurar um pano branco, com um sorriso jovial, perguntou:
-“Em que lhe posso ser útil, senhor Moniz?”.
Tentando ocultar o seu espanto, pediu um café.
Relanceou os olhos pela sala. Na parede, por cima da lareira, despertou-lhe a atenção um imponente quadro a óleo, com uma figura que, àquela distância, lhe pareceu familiar.
Aproximou-se. A curiosidade transformou-se em surpresa; em espanto; em assombro. Estava a ver o seu retrato: só que ele nunca usaria umas patilhas tão grandes.
Voltou para o balcão e quis pagar o café.
O ancião torcia nervosamente o pano branco nos dedos finos e compridos.
-“Por amor de Deus, senhor Moniz. Não é nada. Tem de se apressar. O padre Abílio espera-o. A minha empregada vai indicar-lhe o caminho até ao mosteiro”.
Achou que não valia a pena discutir, tal a rapidez e convicção com que foram ditas as frases.
Dirigiram-se para o mosteiro. A empregada ao entrar na sacristia, pediu-lhe para que se sentasse enquanto ela ia chamar o senhor prior.
O padre Abílio era uma figura imponente; um modelo perfeito para El Greco: altíssimo, direito como um pinheiro com a copa formada pelos fartos cabelos brancos, que contrastavam com os olhos negros e expressivos, abertos dum espanto que Sérgio começava a achar normal. Tinha uma voz grave e pausada.
-“O senhor é um Moniz. Vem almoçar?” – mais do que uma pergunta, era uma afirmação.
Sérgio, não resistiu. As palavras saíram rápidas, veementes.
-“Senhor padre, eu não sei nada de almoços, nem porque todo o mundo está ficando feito bobo a olhar para mim, como se vissem fantasma ou santo em carne e osso. Me explica tudo direitinho, por favor!”.
Era tal o desespero patente na sua cara que o padre deixou para depois a satisfação da sua própria curiosidade.
Eis, em resumo, a história que o padre Abílio lhe contou.
Capítulo II – O almoço de NatalDom Sertório e Dona Eurídice eram as pessoas mais ricas e bondosas da região. Para a sua felicidade ser completa, apenas faltavam os filhos. Desenganada pelos médicos, Dona Eurídice prometeu ao Menino Jesus que se tivesse um filho, a comemoração do aniversário do seu nascimento seria no dia de Natal, com a presença dos habitantes da aldeia, sendo distribuídos brinquedos e prendas a todas as crianças.
Passado algum tempo, a boa nova correu a aldeia: Dom Sertório Moniz ia ser pai.
E assim foi. Para contentamento de todos, no dia 25 de Setembro, perto do meio-dia, nasceu um robusto rapaz a quem deram o nome de Sérgio.
Esta felicidade não durou muito tempo. No início da Primavera, Dona Eurídice adoeceu. Persistentes dores de cabeça, levaram-na a fazer diversos exames. Os especialistas consultados foram unânimes: tinha um tumor no cérebro que dentro de pouco tempo lhe roubaria a vida. Os primeiros sintomas seriam dificuldades de coordenação motora e uma gradual perda de visão e dos momentos de lucidez.
Quando Dona Eurídice toma consciência do seu estado de saúde, no seu cérebro só havia espaço para um pensamento que era simultaneamente um pesadelo surrealista para Dom Sertório: o receio de não comemorar o primeiro aniversário do seu filho.
Nas longas horas que passava a seu lado, surgiu-lhe uma ideia que, quanto mais pensava nela, mais convencido ficava da sua bondade. Para a sua concretização era indispensável a anuência do prior.
Foi mais fácil do que pensava. Depois de lhe contar o seu plano, o pároco concordou de imediato, fazendo a sugestão de pedir a colaboração dos seus paroquianos na missa de Domingo, a mais frequentada.
Foi passada a palavra. A igreja encheu-se de pessoas ansiosas para saber qual o importante anúncio que ia ser feito durante a missa. Num sermão comovente, o padre pediu a crentes e não crentes, para colaborarem numa missão em que todos ficariam a ganhar e ao mesmo tempo fariam a felicidade de alguém que muito estimavam: a Dona Eurídice que, tudo indicava, deixaria em breve este mundo, por vontade do Altíssimo. Com a assembleia a beber as suas palavras, concluiu:
Aquilo que vos peço é que todos aceitem o convite para um almoço de Natal no dia 25 de Setembro. É indispensável que preparem os vossos filhos para receber os presentes das mãos de Dona Eurídice, como se fossem entregues pelo próprio Menino Jesus. Deus vai perdoar-nos esta pequena mentira. Ámen.
A partir desse dia, começaram os febris preparativos para a grande festa. Dom Sertório não tinha mãos a medir para resolver todos os problemas que surgiam. Quase sem notar, o grande dia chegou.
Nessa manhã, como todos os dias, foi ao hospital, visitar a sua amada esposa. Quando chegou ao quarto, Dona Eurídice ainda dormia tranquilamente, devido aos sedativos que a mantinham numa semi-inconsciência. Ansioso, esperou que ela acordasse naturalmente.
Quando se apercebeu da presença de alguém no quarto, abriu os olhos e, ao vê-lo, um sorriso brincou na sua face cansada. E fez a pergunta:
-“Querido, já é Natal”.
-“Sim querida, hoje é dia de Natal e tenho aqui a tua prenda!”.
Um sorriso iluminou a sua face, o quarto, a aldeia, o mundo.
Ajudou-a a abrir o embrulho.
-“É o vestido que quero que vistas na festa de Natal!”
Quando chegaram ao grande salão engalanado, onde se realizava a festa, os habitantes da aldeia levantaram-se e gritaram num coro desafinado:
-“Feliz Natal! Feliz Natal!”
Dona Eurídice morreu três dias depois, agradecendo a Deus por ter podido cumprir a sua promessa.
Na semana seguinte, Dom Sertório Moniz, assinou a escritura da “Fundação Natal Sempre”, a que doou o Mosteiro e um capital inicial suficiente para cumprir a obrigação de fazer a festa de Natal no dia vinte e cinco de Setembro de cada ano, convidando todos os habitantes da aldeia e fazer a oferta de brinquedos às crianças. Ficava também determinado, que a partir desse ano, seriam concedidas bolsas de estudo a todos os que delas precisassem.
Dom Sertório Dinis morreu de causas nunca esclarecidas. Suicídio ou ataque cardíaco? O que se sabe é que deixou o encargo de criar o filho ao seu único irmão, Afonso. Passado pouco tempo, este vendeu todas as propriedades e emigrou para o Brasil. Desde esse dia, nunca mais houve novas ou mandados da família Moniz.
A Fundação, bem administrada, floresceu e continua a cumprir o objectivo para que foi criada: realizar a festa de Natal no dia vinte e cinco de Setembro. Ao acabar a sua narração, o prior olhou para o homem que, vergado ao peso de uma imensa dor, chorava convulsivamente.
-“Afinal quem és tu, que tanto sofres?”
-“Sérgio Moniz!”
O velho padre Abílio que o tivera nos braços, recém-nascido, abraçou-o fortemente, juntando as suas lágrimas e o seu riso ao amigo reencontrado. E disse, com a simplicidade do que é sublime:
-“Parabéns, Sérgio! Vamos embora! Já estão à nossa espera para almoçar!”.