quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

CENÁCULO


Cenáculo Acrílico sobre tela Díptico 2x60x100cm


Cenáculo Peça 1


Cenáculo Peça 2

Cenáculo, nome dado à sala, à reunião, em que Jesus Cristo celebrou a ceia. Por ext.
Reunião qualquer de pessoas unidas para um fim comum, especialmente sociedade ou grémio literário.

Quando um casal meu amigo me convidou para almoçar porque queriam falar comigo sobre um assunto importante, não fazia ideia de qual seria o tema da conversa. Durante o almoço foi crescendo a minha curiosidade que, finalmente, foi saciada na hora dos cafés. Tinham um espaço nobre da casa que queriam preencher com uma obra minha. Deixavam ao meu critério todos os pormenores: cor, técnica, estilo, tamanho... Aceitavam qualquer sugestão porque confiavam em mim... Se não fossem meus amigos, a partir desse momento ficaria a considerá-los como tal: depositar no meu critério o preenchimento dum espaço do seu lar, com que iriam conviver para o resto da sua vida, mais do que uma prova de amizade, é uma prova de amor...
Poucas pessoas, os dedos de uma mão chegam para as contar, têm uma obra oferecida por mim, se descontar aquelas que ofereço para serem leiloadas para instituições de solidariedade.
Fiquei marcado pelas lágrimas de uma aluna minha que ofereceu uma das suas obras a um familiar, e foi surpreendida por a ter encontrado escondida na gaveta dum armário, na despensa. Não sei que maior ofensa se pode fazer ao trabalho de alguém, independentemente do seu valor artístico! Agora, aconselho os meus alunos a fazerem como eu: para desfazer dúvidas sobre o interesse de alguém sobre uma obra, peço um montante por ela, nem que seja simbólico. A reacção é sempre esclarecedora... Em qualquer altura, encontraremos a oportunidade de devolver a quantia recebida sem o amigo notar: no aniversário, no Natal... que pode ser quando quisermos.
Coloquei uma condição: teriam de me convidar para ir a sua casa, tomar um café e uma bebida. Claro que foi aceite: nem sequer era uma condição, era um prazer – disseram.
Passei parte do tempo num convívio do qual não tirei muito partido porque volta não volta, estava a pensar na principal motivação dessa minha visita. Registava mentalmente a cor da parede com luz, sem luz, na sombra, tomava nota do tom da mobília, das peças que envolviam toda a enorme sala comum, com a confortável lareira, e as portadas envidraçadas por onde jorrava a luz... Ah! Falta dizer que o local onde a peça seria colocada era na parede fronteira à mesa, no espaço da sala de jantar.
Quando a tela ficou completa combinámos a entrega da obra, com a sua instalação no local onde iria morar. Pedi aos meus amigos que fossem brincar com o seu belo cão para o jardim enquanto eu colocava o díptico. Podem imaginar (se calhar não podem!) a minha angústia expectante quando eles se voltaram para ver pela primeira vez a obra no local escolhido. Eu fiquei em êxtase com a sua reacção, talvez por contágio...
A Beleza reside no mundo das ideias e o Belo é identificado com a perfeição, com a verdade. A partir da beleza emanada por uma obra podemos chegar à beleza superior do Homem.
Uma vez por outra, é bom esquecer imperfeições...

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Lisboa, menina e moça

SÉRIE - AS CIDADES DAS EMOÇÕES


Igreja de Santo Estêvão
Acrílico sobre tela 70X70cm

Igreja de Santo Estevão (1702-1750)
Alfama, é um dos bairros antigos de Lisboa, com a sua fascinante paisagem de vielas estreitas e sinuosas, com restaurantes e bares na moda, mas também, com as tradicionais tabernas, onde todas as noites se canta a canção nacional, o fado, acompanhado pelo som das guitarras.
A igreja, Monumento Nacional, característico do barroco, tem um perfil irregular, só com uma torre. A fachada é dividida em três panos por pilastras e rematada por um frontão triangular, encimado por uma cruz. No seu interior oitavado de geometria simples e traçado rectangular com os ângulos cortados, destaque para o retábulo, os altares laterais, a estatuária e os azulejos.
Utilizei uma tela quadrada que torna o conjunto mais estável, sem tensões. A divisão clara entre o céu, o rio e o bairro de Alfama, com uma crescente concessão mais generosa do espaço, puxa o olhar do observador, para baixo. Contrariei essa tendência, acentuando a intensidade da cor azul nas margens, para manter o olhar junto ao ponto fulcral da obra, a Igreja, que ao contrário das regras, está colocada no lado esquerdo da tela.
Estas três divisões (céu, rio, casas) foram acentuadas com a texturização da tela. Com uma espátula (cartão de crédito:) fiz a distribuição de quantidades generosas de Modeling Paste, sem a preocupação de definir muito bem as zonas. No céu a espátula girou em todas as direcções (céu para todos), na água na horizontal (descanso absoluto), e no casario no sentido vertical (as casas, como as árvores, morrem de pé). Não tive qualquer preocupação de que as marcas deixadas pela espátula tivessem obrigatoriamente de estar em consonância com uma parede, janela ou qualquer sítio especial, até porque não fiz qualquer desenho prévio. Como é óbvio, dediquei especial atenção à igreja. No casario, mais do que definir pormenores, procurei as tonalidades gerais de cada zona. A tela foi pintada com acrílico, para manter a espontaneidade que uma pintura a la prima deve revelar.
Esta, foi a última pintura que fiz.
Está aqui para ser vista pelos amigos que me visitam. Espero de todo o coração, que gostem tanto dela como eu... com ou sem milagre do Santo Estêvão...

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

SAGITÁRIO


Sagitário Óleo sobre tela 100X100cm
Durante anos, fui surpreendido por uma amiga, profundamente estudiosa destes assuntos da astrologia, que era capaz de prever as situações mais inesperadas sobre a vida das pessoas. Esse facto afectou-a de tal maneira, que deixou de fazer horóscopos das pessoas amigas, para evitar problemas de consciência com o “conhecimento” que tinha de que algo de mal iria acontecer, sem as poder avisar dessa circunstância. A mim, avisou-me que iria abandonar a minha carreira no Marketing e que, a partir dessa data, começariam a aparecer-me nas mãos e cara, manchas de diversas cores...
Quer acreditemos ou não, todos nós já deitámos os olhos a um jornal ou a uma revista, para ler o que dizem os astros sobre esta ou aquela situação.
Quando decidi passar para a tela todos os signos do Zodíaco, comecei a investigar os elementos que deviam compor cada uma das obras.
Como é natural comecei pelo meu.
Então, fiquei a saber que Sagitário é o 9.º signo do Zodíaco, associado à constelação de Sagittarius e que é ilustrado com a figura do arqueiro Quiron, um centauro, metade homem, metade cavalo, como todos os centauros que se prezam. O seu elemento é o fogo, o planeta regente Júpiter, perfumes canela e rosa, a pedra da sorte ametista (eu acho que devia ser o diamante), o metal é o estanho (parvo, era melhor platina), a cor púrpura...
Caracterizado por um amor à verdade, é muitas vezes inconveniente. Gosta de arriscar, de descobrir novos horizontes e viajar. Procura um significado mais profundo para se transcender da natureza humana para o divino, que pode resultar em intolerância para as pessoas vulgares. Quer sempre ultrapassar os limites com um optimismo inabalável.
Fui ver qual a companhia que tinha entre os Sagitários ilustres: Leonardo da Vinci, Beethoven, Oscar Niemeyer, Steven Spielberg, Manuel de Falla, compositor espanhol (Espanha é regida pelo signo do Sagitário), autor da “Dança Ritual do Fogo”... Nada mau...
Gostei muito da parte que diz que ninguém sentirá tédio na companhia de um Sagitário, que pode falar de filosofia, ou religião e ser capaz de tudo (não sabia!) para satisfazer a mulher que ama.
Para a realização da obra, socorri-me da tensão e energia da música de Beethoven, que dá uma fogosidade transcendente à sua música em que o tom e a cor são azul-púrpura profundo, com o propósito de desenvolver a consciência cósmica (seja lá isso o que for) do músico, de quem escreveu estes palavrões e, já agora, do pintor. Coloquei uma série de símbolos cabalísticos que têm a ver com o tema. Já procurei nos meus apontamentos, mas não os consegui encontrar: alguns deles já não sei o que significam, por isso, não me façam perguntas difíceis...
Como disse Jorge, esta tela está no primeiro museu Tapadinhas, de que é curadora residente a minha filha Elsa...

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

MEMORIES


Memories - Óleo e acrílico sobre tela
Colagem sobre tela 80X90cm

Quem se dá ao trabalho de ler o que escrevo sobre as pinturas que apresento, sabe que eu ando normalmente com um pequeno bloco, onde vou tomando notas de pequenos pormenores de paisagens e cores mais invulgares que vão surgindo.
Muitas vezes ao chegar ao estúdio, com a ajuda das notas tomadas, dou umas pinceladas em recortes de tela, para reproduzir, enquanto estão frescas na minha memória, as cores e as formas que me chamaram a atenção.
Esses pedaços de tela também servem para fazer experiências com cores e texturas, ou para tirar dúvidas sobre a correcção de opções que vou tomando, à medida que a obra avança.
Um dia, ao olhar para esses recortes, ocorreu-me a ideia de os juntar: isolados não têm valor, em conjunto talvez ganhem uma nova força, pensei.
O primeiro conjunto que fiz, que um casal amigo ostenta orgulhosamente em sua casa, o elemento dominante é a água de fontes, de rios, de mares, ou do oceano...
Um outro está repleto de flores campestres, de jardins, em vasos ou em jarras... Este tem pormenores da Biblioteca da Moita, as escadas do Convento da Arrábida, uma rua de Lisboa, aspectos da ria de Aveiro, casas, portas, janelas e azulejos de diversos locais, luzes de cidades... A obra está em casa da minha filha Elsa...
Se olhar com atenção, poderá descobrir que aquele azulejo está na rua onde mora ou, melhor ainda, na sua casa...

domingo, 10 de fevereiro de 2008

SÉRIE VILAS HISTÓRICAS - MOITA


Moita - Frente ribeirinha (díptico)
Óleo sobre tela 2 x 80x100cm





Aproveitar a maré

No passado mês de Novembro saiu na publicação da Câmara Municipal d a Moita, MARÉ CHEIA, uma entrevista, onde para além de uma resenha biográfica, me perguntam qual o espectáculo que eu queria destacar entre a programação do mês.
Esse contacto recordou-me o trabalho que o Município me adquiriu, representando a frente ribeirinha da Moita.
A caldeira da Moita tem um cais construído no século XVIII, de onde saiam as antigas embarcações que carregavam e descarregavam mercadorias e passageiros, para Lisboa, atravessando o estuário do Tejo. Pela sua riqueza de recursos e localização geográfica, este local, em que ainda são visíveis os restos de antigas salinas, está na rota das migrações das aves aquáticas, constituindo uma das mais importantes zonas húmidas da Europa. As colónias de flamingos são os exemplares mais emblemáticos destas aves.
Os cuidados crescentes para evitar a contaminação da água, tornaram possível, em pouco tempo, recuperar a população de vermes utilizados pelos pescadores: minhoca, ganso e casulo. Quem não tem uma garateia (ninguém tem:), o instrumento capaz de tirar minhocas do lodo, só na baixa-mar pode apanhar os vermes de que necessita para a pesca. Uma hora antes do pico da maré e até uma hora depois, pode ver-se na caldeira, homens com pequenas pás para cavar o lodo e baldes para guardar o isco apanhado, numa grande azáfama, natural em quem sabe que os ciclos das marés são imutáveis.
Ciente destas limitações, tive de planear cuidadosamente esta obra.. Servi-me dos boletins meteorológicos para ter a certeza que as condições climatéricas não se alteravam dramaticamente durante a sua execução e, podem crer, que durante o período em apreço, não houve falhas. Outro pormenor importante foi a carta das marés, para saber as horas da baixa-mar e já estar preparado com o equipamento para retratar os pescadores, na apanha do isco para a pesca. Como o ponto de observação era na outra margem do rio, podia lá ficar calmamente sem a distracção que a natural curiosidade das pessoas provoca a quem se quer concentrar no seu trabalho, para o qual dispõe de pouco tempo útil. A partir da segunda ou terceira sessão, alguns dos pescadores já sabiam o que eu estava a fazer e pude contar com a sua colaboração como modelos...
No lado esquerdo da tela está a Escola Básica 2.º e 3.º Ciclos Fragata do Tejo, conhecida por Benetton, por causa das suas cores garridas, onde a minha filha mais velha, Dulce, deu aulas. No lado direito, junto aos plátanos, estão as instalações do Centro Náutico Moitense, onde eu passo muitas horas com alguns bons amigos, não a fazer vela ou remo, como seria de esperar, mas a jogar xadrez... Na segunda parte do díptico, na extrema direita (não em termos políticos:), está o edifício da Câmara Municipal. Por detrás e a cortar a linha do horizonte, surgem as copas de uns eucaliptos. A vivenda onde moro, está implantada num terreno adjacente, limitado por ciprestes. Com estas indicações, julgo ser fácil a qualquer amigo encontrar-me.
Espero por vós!

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

SÉRIE VILAS HISTÓRICAS - ÓBIDOS


Óbidos - Muralhas Óleo sobre tela 60x100cm

Esta obra foi a prenda de casamento que eu referi na primeira entrada de Vilas Históricas.
Não a apresentei na sequência, como tinha planeado, porque quis aproveitar a descrição tão fiel, poética e palpitante de vida, da minha amiga Irene.
Para mim, na execução de qualquer paisagem, o procedimento ideal, é ir para o local armado de cavalete, tintas e restante equipamento. Numa paisagem urbana, é quase sempre impraticável. Na falta do equipamento pesado utilizo a fisga: a máquina fotográfica e um pequeno bloco de folhas brancas. Agora com as máquinas digitais é uma brincadeira tirar fotografias. Não estamos condicionados aos rolos, nem preocupados com a fortuna que vamos gastar em passá-las para papel, nem com o tempo que o laboratório leva a fazer o trabalho...
Então, para que serve o bloco de notas? A minha experiência diz-me que as fotografias deixam dúvidas sobre pequenos pormenores, que podemos querer ou não mostrar no quadro, tais como, números, palavras, símbolos ou cores. Às vezes está em primeiro plano um elemento que queremos eliminar porque o que está oculto é mais importante: não devemos ficar presos às nossas capacidades miméticas. Nessas ocasiões, é indispensável o caderno de esboços, para traçar algum pormenor que quero destacar, ou descrever a cor que estou a ver, ou seja, as cores que, combinadas, dão como resultado a cor daquele momento. Porque a luz do sol é muito traiçoeira: muda as cores e as sombras, de instante para instante. Para indicação futura, deixo sempre no papel bem marcada a direcção da luz.
No estúdio, depois de seleccionar a fotografia que vai servir de base ao quadro que vou executar, escolho o elemento central, donde irá irradiar todo o conjunto. Em qualquer das obras há um elemento comum colocado na Secção de Ouro, ou Divina Proporção, como lhe chamou Leonardo da Vinci, no seu Tratado de Pintura: um cipreste. Não desloquei a árvore :) mas “plantei-a” no sítio que me interessava para guiar o olhar do espectador. Dediquei muita atenção a essa árvore: posso garantir que tem todas as cores utilizadas na peça, para dar harmonia ao conjunto. Os telhados, não só pela sua distribuição no espaço, mas também pela infinidade de cores que os compõem, são outro elemento muito importante nestas obras. Não parece, mas está lá uma infinidade de tons, para as telhas pintadas vibrarem como se tivessem o sol a inundá-las de luz.
Depois de ter toda a tela coberta de cor, preciso de voltar ao mesmo sítio, de preferência com o cavalete, tela e todo o restante material. Estar com o cavalete montado a corrigir os erros que se detectam in loco, a tirar as dúvidas de que fui tomando nota na execução da obra, a vê-la crescer à medida que vou dando as pinceladas definitivas, é um prazer indescritível. Em determinados locais não é possível. O caderno de esboços é, mais uma vez a solução do problema. Vejo e revejo todas as dúvidas apontadas, até ter a certeza que está claro no meu espírito, a resposta para cada uma delas. Regresso rápido ao estúdio, para pintar, de olhos fechados, aquilo que, mal ou bem, gravei na minha memória, como um tesouro precioso.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

SÉRIE VILAS HISTÓRICAS - ÓBIDOS


Óbidos - Igreja Óleo sobre tela 80x100cm

Querido Antonio, entro en tu casa y me encuentro con Óbidos y tengo la sensación de que en lugar de abrir mi portátil, he abierto una ventana. Qué espléndido se ve bañado en luz y abrazado por las murallas del castillo. Debe ser como hoy, una mañana de domingo, de un invierno que ya se va despidiendo. Sus calles huelen a leña y a pan recién hecho. Pronto sonarán las campanas de la Iglesia llamando a misa de doce. Hoy no madruga nadie, es día de descanso. Los niños saldrán a jugar a la calle y los novios a pasear por esa vereda que rodea la ciudadela hasta llegar al castillo. Y los más mayores irán a la plaza del pueblo para aprovechar los rayos de un sol invernal purísimo y allí, sentarse a evocar otros tiempos, adormecidos por el rumor del agua de la fuente.
Ya no podré olvidar Óbidos.

Palavras da minha amiga Irene (http://fernandasedano.blogspot.com), na entrada anterior.
Quem sabe descrever tão bem o local é porque já lá esteve. Se não agora, noutra altura qualquer... talvez como uma das rainhas que por lá passou.
Um grande beijo, querida amiga.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

SÉRIE - VILAS HISTÓRICAS


Óbidos Óleo sobre tela 90x120cm

A HISTORIA DE ÓBIDOS
Gosto de passear num centro comercial. Quase o faço sem pensar. Durante muitos anos, por motivos profissionais, passava algumas horas por semana, nestes locais, para verificar in loco os meus produtos e analisar as actividades da concorrência. Nos primeiros tempos depois de reformado (para não dizer ainda hoje), era incapaz de comprar qualquer coisa como uma pessoa normal. Volta não volta, dava por mim a fazer esse trabalho por puro prazer: comparar preços, tomar notas de promoções ou de lançamentos da concorrência, corrigir posições nas prateleiras, escolher locais estratégicos para determinados produtos. Era tão absorvente que só via televisão para verificar se na altura dos anúncios, os meus produtos entravam na sequência certa.
Foi num grande centro comercial de Lisboa que aconteceu o que passo a relatar.
A galeria de pintura era um sítio obrigatório de passagem. Nesse dia, estava em grande destaque um “Cristo” de Bual (1926-1999). Foi um pintor pioneiro da pintura gestual em Portugal, entre a abstracção e a figuração, uma pintura de expressão directa, convulsiva e caótica, que sintetizava as contradições do homem contemporâneo. Já depois da sua morte (não é sempre assim?), a cidade da Amadora, prestou homenagem ao pintor com uma exposição de vinte e seis Cristos...
Quando entrei, só estava na galeria o seu dono. Começámos a conversar e, palavra puxa palavra, acabei por dizer-lhe que eu também era pintor. Perante a sua curiosidade, mostrei-lhe fotografias de algumas pinturas. O galerista mostrou-se interessado em expor uma obra minha na sua galeria. A escolha recaiu sobre “Óbidos” , nome de uma vila cuja origem remonta ao século I, tendo sido conquistada aos mouros em 1148 e, a partir daí, local escolhido para descanso ou refúgio de reis e rainhas, que foram deixando marcas, que se mantêm até aos nossos dias. Combinados os pormenores, no dia seguinte, entreguei-lhe a obra.
Fui passando pela galeria e um dia o meu coração disparou como um cavalo de corrida: na montra em grande destaque já não estava o Bual estava o Tapadinhas. Fiquei por ali, como uma alma penada, a esconder-me atrás de colunas, para não ser visto pelo dono ou as empregadas da galeria, a tentar ouvir os comentários das pessoas que paravam em frente da montra.
Passados poucos dias, telefonaram-me a dizer que a obra tinha sido vendida e a convidar-me para passar por lá, a fim de receber o montante combinado. Logo que me foi possível, assim fiz. Exultante, entrei na galeria e o dono, discretamente, fez-me sinal para ficar calado. Estava a falar com um cavalheiro, vestido impecavelmente, com uma bengala de castão de prata, estando na sua proximidade um calmeirão bem trajado, mas com músculos a mais para o fato e gravata lhe assentar decentemente. Ouvi o senhor dizer para o dono da galeria, que estava a desembrulhar o “Cristo”:
- Meu caro, não me surpreende que esteja maravilhoso! Tem de estar, atendendo ao que paguei... Quero é ver a outra peça: Óbidos...
Fiquei sem respiração. O dono da galeria, retirou o papel que embrulhava a obra e procurou um ângulo favorável, para poder ser apreciada. A peça tinha uma moldura de que eu pessoalmente não gostava, mas que lhe dava uma imponência e grandeza, de acordo com as vetustas pedras do castelo. Ouvi umas exclamações de prazer e umas palavras que não reproduzo, mas que foram muito agradáveis de ouvir...
Cerca de duas semanas depois da cena que acabo de descrever, recebi uma chamada do dono da galeria a pedir-me o favor de fazer outra tela sobre Óbidos, para o mesmo senhor, que a queria oferecer à filha, como prenda de casamento. Ocorreu-me de imediato, a disparidade entre o preço da minha obra e o do Cristo de Bual. Acedi, a satisfazer a encomenda mas dupliquei o valor que queria pela nova pintura. A aceitação imediata do galerista, deixou-me a certeza de continuar a ser uma pechincha...