terça-feira, 25 de setembro de 2007

O VELHO QUE FAZIA CESTOS


Tinta da China s/papel 32x24

O VELHO QUE FAZIA CESTOS

Num dia igual a outros, dirigia-me para casa e, ao fazer a rotunda da Moita, olhei naturalmente para o terreno baldio que continua a existir, paredes meias com a catedral de consumo ali implantada. E reparei nela.
Estava junto às cinzas das inúmeras fogueiras acesas durante o Inverno, no que me pareceu uma posição tranquila de descanso, indiferente a quem passava, um tímido raio do sol da manhã a acariciá-la.
Passados uns dias, não sei se muitos, porque à medida que envelheço, os dias ficam pequenos para fazer as coisas importantes que fui adiando, voltei a vê-la.
Passava, lentamente, em frente da taberna, sem olhar para nenhum lado, os olhos, melhor, todos os sentidos agarrados às pedras da calçada. Pareceu-me mais magra e suja.
Atravessou a rua com o seu passinho miúdo, não olhou sequer para dentro do quartel da GNR, seguiu em frente, fez a curva que a levou à ponte sobre o rio da Moita, deteve-se durante alguns segundos e continuou a caminhada até ao local onde, pela primeira vez, a tinha visto sem companhia.
Confesso que a sua imagem esguia, o seu andar algo incerto, ficaram gravados no meu espírito, traduzindo uma sensação amarga de esquecimento e abandono.
Passados mais alguns dias, voltei a encontrá-la. Estava sentada junto às palmeiras do largo da praça. Pareceu-me ainda mais magra, dando a sensação que só a pele segurava o seu frágil esqueleto. Mas estava vigilante: procurava com o olhar alguém que nunca mais aparecia. Quando se voltou para mim, nos seus olhos vi todo o desespero do mundo.
Esse olhar atingiu-me como se tivesse disparado um dardo que mais do que atingir o coração, me abriu a cabeça, numa súbita compreensão do drama.
"Morreu, ou está internado no hospital, ou, ainda pior, no asilo, esse arquivo de mortos adiados. Estará preso?"
Se morreu, só Deus pode ressuscitá-lo.
Senhor Doutor, senhor Guarda, senhor Juiz: "Soltem-no!".
Esse homem não é um vadio. Nem pode ser um criminoso: tem tanto amor para dar. Eu sei que veste roupas andrajosas, está sujo, cheira mal, a suor e a vinho. Mas não pedia esmola: vendia o produto do seu trabalho. Estou pronto a testemunhá-lo. Comprei-lhe muitos cestos de cana que tenho em casa, como prova do que afirmo.
Apreciei, algumas vezes, nas manhãs frias de Inverno, ele junto da fogueira, perto da barraca onde dormia, a cortar e a alisar as canas que utilizava no fabrico dos seus cestos, com os quais, julgava eu, conquistava a sua independência, o seu direito de viver em liberdade.
Posso testemunhar, também, senhor Doutor, senhor Guarda, senhor Juiz, que não sei se ele comia restos ou não, o que sei é que para a sua companheira, comprava o que de melhor havia no mercado. Foi ele que me pediu, à porta do supermercado:
-" A mim não me deixam entrar. Tem aqui cinco euros. Por favor, compre duas latas de Pedigree para a minha cadela."
Ouviram, senhores Médicos, Juizes, Guardas: Soltem-no!
Senhores da Liga dos Direitos dos Animais: a cadela ainda lá estava ontem, à espera. Recusa-se a comer.
Apressem-se! Temos pouco tempo para os salvar!

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